terça-feira, 25 de novembro de 2014

Predestinação

A doutrina da predestinação segundo Armínio

Armínio não se recusava a discutir os decretos de Deus. Apenas se opunha à ordem específica em que os decretos divinos eram colocados nos dois principais ramos do calvinismo. Segundo ele, ambos eram passíveis de críticas devastadoras da mesma espécie. Por exemplo, nenhum colocava em primeiro lugar o decreto divino no sentido de enviar Jesus Cristo para ser o Salvador do mundo, enquanto o evangelho é essencialmente Jesus Cristo. Na Declaração de Sentimentos, Armínio propôs um esquema alternativo de quatro decretos divinos a respeito da salvação intitulado “Meus próprios sentimentos a respeito da predestinação”:

I. O primeiro decreto absoluto de Deus sobre a salvação do pecador é aquele pelo qual decretou que nomeava seu Filho Jesus Cristo mediador, redentor, salvador, sacerdote e rei [...]
II. O segundo decreto exato e absoluto de Deus é aquele pelo qual decretou que receberia em favor aqueles que se arrependessem e cressem e que, em Cristo [...] se cumpriria a salvação dos penitentes e crentes que perseverassem até o fim; mas que deixaria em pecado e sob a ira todos os impenitentes e incrédulos e os condenaria pela alienação a Cristo.
III. O terceiro decreto divino é aquele pelo qual Deus decretou que administraria de modo suficiente e eficaz os meios que eram necessários ao arrependimento e à fé [...].
IV. Depois desses, segue-se o quarto decreto pelo qual Deus decretou a salvação ou a perdição das pessoas. Esse decreto se fundamenta na presciência de Deus, pela qual desde a eternidade ele sempre soube quais os indivíduos que, pela graça [preveniente], creriam e, pela graça subsequente, perseverariam.

Para Armínio, portanto, a predestinação era, antes, de Jesus Cristo e não de indivíduos sem ele.

É importante lembrar que Armínio insistia que toda a questão da predestinação estava relacionada à condição caída dos seres humanos carentes de redenção. Para Armínio, o decreto divino de permitir a queda, em outras palavras, não dizia respeito à salvação. Os decretos de Deus a respeito da salvação vêm depois (são logicamente posteriores) da permissão divina da queda de Adão e de Eva. Como Armínio concebia a queda? Deixou isso claro em seu tratado Certos artigos a ser diligentemente examinados e ponderados: “Adão não caiu por decreto de Deus, nem por estar destinado a cair, nem por ter sido desertado por Deus, mas por mera permissão de Deus, que não está subordinada a nenhuma predestinação, nem à salvação ou à morte, mas que pertence à providência, que é distinta e oposta à predestinação”. Em outras palavras, a providência divina compreende certos decretos e a predestinação divina, outros. As duas não devem ser confundidas. Na providência, Deus decretou que permitiria a queda de Adão e de Eva e de toda a raça humana junto com eles. No Exame do panfleto do Dr. Perkins, Armínio disse claramente que Deus não poderia evitar a queda depois de criar os seres humanos e dar-lhes o dom do livre-arbítrio. Armínio acreditava na autolimitação e restrição de Deus e também na liberdade humana genuína no relacionamento abrangente estabelecido pela aliança. Portanto, os decretos de Deus quanto à predestinação dizem respeito aos seres humanos apenas como pecadores depois da queda e, de modo algum, à própria queda. Deus sabia previameme que os seres humanos cairiam, mas não decretou nem predestinou, de nenhuma forma, tal coisa.

Depois que os seres humanos caíram, argumentava Armínio, o primeiro decreto de Deus em relação a eles era providenciar para que Jesus Cristo fosse seu Salvador. Então, depois disso, decretou que salvaria, por meio de Cristo, todos aqueles que se arrependessem e cressem e que deixaria à sua merecida perdição aqueles que recusassem a salvação. A partir daí, Armínio começa a analisar a predestinação dos seres humanos caídos. Em primeiro lugar, trata-se de classes e grupos e não de indivíduos. Isto é, Deus decreta que salvará os que creem, todos eles. O objeto da eleição para a salvação é um grupo indefinido de pessoas: os crentes. O objeto da condenação para a perdição também é um grupo indefinido de pessoas: os incrédulos. Foi assim que Armínio interpretou o texto de Paulo em Romanos 9: tratando-se de classes ou grupos e não de indivíduos. “Armínio entende Romanos 9 em termos de ‘predestinação de classes’: ‘os que buscam a justiça pelas obras e os que a buscam pela fé’; Esaú é exemplo dos que buscam a justiça pelas obras e Jacó, dos que buscam pela fé.” Mas Armínio também tinha uma explicação para a predestinação condicional dos indivíduos. Em sua presciência absoluta, Deus sabe quem terá fé e quem não terá. Como Paulo disse em Romanos 8.29: “Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho; a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos”. A predestinação de grupos, portanto, é incondicional. A predestinação de indivíduos é condicional e se baseia na presciência de Deus daquilo que farão livremente com a liberdade que Deus lhes dá. Essa é a essência do segundo e do quarto decretos de Armínio mencionados anteriormente.

O sinergismo evangélico de Armínio

E quanto à graça? Enquanto os calvinistas clássicos argumentavam que a graça salvífica é sempre irresistível, Armínio acreditava que a graça significava que a salvação é resistível e que muitos, inclusive nas Escrituras, resistiram à graça de Deus. Mas como a salvação pode acontecer “unicamente pela graça” se os seres humanos são livres para aceitá-la ou rejeitá-la? Se alguém não achar essa pergunta razoável, é provável que seja arminiano! Os calvinistas e outros monergistas acreditam que, para se dar completamente pela graça, conforme Paulo afirmou em Efésios 2, a salvação não podia ser uma dádiva recebida “livremente” no que se refere à contingência. Em outras palavras, se a pessoa que recebe a graça para a salvação pudesse recusá-la, então, ao aceitá-la, estaria praticando uma “boa obra” e mereceria uma parte da salvação, podendo assim jactar-se. Isso também sugere uma capacidade como a do pelagianismo em que a pessoa contribui para sua própria salvação, declaram os monergistas. A solução de Armínio para esse problema delicado é o conceito-chave da “graça preveniente”. Armínio sempre foi cuidadoso ao atribuir toda a salvação à graça e nada às boas obras. Um exemplo típico desse cuidado está na seção sobre a graça e o livre-arbítrio da Carta endereçada a Hipólito A. Collibus: “O mestre [de teologia] que atribui o máximo possível à graça divina tem a minha mais alta aprovação, contanto que pleiteie a causa da graça de tal maneira que não provoque danos à justiça de Deus e não remova o livre-arbítrio para praticar o mal”. Mas como isso é possível? Armínio explicou:

A respeito da graça e do livre-arbítrio, ensino conforme as Escrituras e o consentimento ortodoxo: o livre-arbítrio não tem a capacidade de fazer ou de aperfeiçoar qualquer bem espiritual genuíno sem a graça. Para que não se diga que eu, assim como Pelágio, cometo uma falácia em relação à palavra “graça”, esclareço que com ela me refiro à graça de Cristo que pertence à regeneração: afirmo, portanto, que a graça é simples e absolutamente necessária para a iluminação da mente, para o devido controle das emoções e para a inclinação da vontade ao que é bom. É a graça que [...] força a vontade a colocar em prática boas ideias e os bons desejos. Essa graça [...] antecede, acompanha e segue; ela nos desperta, assiste, opera para queiramos o bem, coopera para que não o queiramos em vão. Ela afasta as tentações, ajuda e oferece socorro em meio às tentações, sustenta o homem contra a carne, o mundo e Satanás, e nessa grande luta concede ao homem a satisfação da vitória. [...] A graça é o princípio da salvação; é o que a promove, aperfeiçoa e consuma. Confesso que a mente [...] do homem natural e carnal é obscura e escura, que suas afeições são corruptas e imoderadas, que sua vontade é obstinada e desobediente e que o próprio homem está morto em pecados.

A graça descrita por Armínio nessa declaração um tanto longa é a graça preveniente. É a graça que Deus oferece e concede a todas as pessoas de alguma forma e é absolutamente necessária para que os pecadores caídos – mortos em pecados e escravos da vontade – creiam e sejam salvos. É a graça sobrenatural, auxiliadora e outorgante de Jesus Cristo. Mas por ser preveniente (acontece antes), pode ser resistida. Se a pessoa não resistir à graça preveniente e permitir que ela opere em sua vida pela fé, ela se tornará justificadora. A mudança é a “conversão”, não uma boa obra, mas a simples aceitação. É aqui que aparece o sinergismo de Armínio. A vontade humana, livre pela graça preveniente (a operação do Espírito Santo dentro da pessoa), precisa cooperar simplesmente aceitando a necessidade da salvação e permitindo que Deus outorgue a dádiva da fé. Ela não será imposta por Deus e o pecador não pode merecê-la. Ela deve ser aceita livremente, mas até mesmo a capacidade de desejá-la e de aceitá-la se torna possível pela graça. O conceito da graça preveniente permite que a soteriologia de Armínio seja sinergista (envolvendo as vontades e atuações divina e humana) sem cair no pelagianismo ou no semipelagianismo. Diferentemente deste último, o sinergismo de Armínio coloca toda a iniciativa e capacidade de salvação a favor de Deus e reconhece a total incapacidade do ser humano de contribuir para a própria salvação sem a graça auxiliadora sobrenatural de Cristo.

Está claro, portanto, que Armínio rejeitava não somente o supralapsarismo, como também qualquer conceito monergista da salvação. No mínimo, negava a eleição incondicional, a expiação limitada e a graça irresistível. Não se pode afirmar que negava a depravação total. A citação apresentada da Carta a Hipólito indica que de fato acreditava nela. Alguns remonstrantes claramente não acreditavam e isso se tornou uma questão delicada e controversa depois da morte de Armínio. Este não negava a perseverança (a segurança eterna dos santos), mas argumentava que a questão não estava encerrada e advertia contra a falsa segurança e certeza. Assim como no caso da depravação total, muitos arminianos posteriormente rejeitaram a perseverança incondicional e ensinaram que a pessoa pode perder a salvação por indiferença e também pela rejeição consciente da graça. Muitos outros arminianos passaram a crer na segurança eterna dos genuinamente regenerados e justificados pela graça.

O legado do arminianismo

Uma questão ainda debatida pelos estudiosos de Armínio é se a sua teologia era uma alternativa à teologia reformada ou uma adaptação dela. Richard Muller sustenta que era uma alternativa e, como prova, indica a forte ênfase de Armínio à autolimitação de Deus. Os teólogos reformados posteriores a Calvino reconheciam a condescendência de Deus na revelação, mas negavam unanimemente qualquer autolimitação de Deus na providência ou predestinação. Carl Bangs sustenta a opinião de que a teologia de Armínio representa uma adaptação e desenvolvimento da teologia reformada. Embora o próprio Armínio quase certamente entendesse dessa forma sua teologia, Muller está mais próximo da verdade. A teologia de Armínio é totalmente protestante, mas não reformada. O teólogo holandês se propôs reformar a teologia reformada, mas acabou criando um paradigma protestante totalmente diferente. Os anabatistas argumentariam, com razão, que se tratava de um paradigma que Baltasar Hubmaier e outros pensadores anabatistas começaram a desenvolver quase um século antes. Ele poderia ser chamado de “sinergismo evangélico”.

O arminianismo, embora politicamente reprimido e posteriormente marginalizado no país de origem, radicou-se e floresceu em solo inglês no fim do século XVI. Muitos líderes da Igreja da Inglaterra foram simpáticos a ele no início e, posteriormente, adotaram-no abertamente. Embora Os trinta e nove artigos de religião da Igreja da Inglaterra incluíssem a afirmação da predestinação, o arminianismo tornou-se opção permanente da tradição anglicana. No século XVII, uma era de racionalismo e avivamento na Inglaterra e na Nova Inglaterra, os arminianos dividiram-se em dois grupos: arminianos de mente e arminianos de coração. Os primeiros pendiam para o deísmo e a religião natural e os últimos, para o pietismo e o avivamento. A história desses movimentos será contada nos capítulos posteriores. Basta dizer que, no cristianismo da era moderna de língua inglesa, é possível ser arminiano liberal ou arminiano evangélico. O movimento metodista primitivo, fundado por John e Charles Wesley, bem como muitos batistas primitivos representavam o segundo tipo de arminianismo, enquanto os deístas e os pensadores protestantes liberais dos séculos XVIII e XIX representavam o primeiro. Com esses movimentos, a teologia arminiana paulatinamente tornou-se parte das grandes tendências do pensamento protestante na Inglaterra e nos Estados Unidos – para desgosto dos protestantes reformados mais tradicionais.

Como vimos, depois da morte dos primeiros reformadores, seus herdeiros ortodoxos e escolásticos elevaram à importância primordial as questões da exatidão doutrinária e litúrgica. Alguns críticos diriam que as igrejas nacionais protestantes magisteriais da Europa e da Grã-Bretanha declinaram até se tornarem “ortodoxia morta” que crê na regeneração batismal, no clericalismo e no constantinismo. Essa situação provocou a reação dos ministros das igrejas estatais chamada pietismo. Entre outras coisas, ela tentava vincular a justificação à conversão, e a regeneração ao começo de uma vida de santificação verdadeira. Também censurava a ênfase exagerada à ortodoxia doutrinária e a indiferença diante da experiência espiritual como sinal autêntico do cristianismo e criava lemas como: “melhor uma heresia viva do que uma ortodoxia morta!”. É para a história do pietismo e de sua tentativa de reformar a teologia protestante nos séculos XVI e XVII que agora dirigiremos nossa atenção.

Fonte: História da Teologia Cristã, 465-483